A literatura de Maria Teresa Horta é assinalada por pontos de entremeio entre a revelação do universo feminino e a revolução por meio da escrita. Esses pontos se ligam através de uma poética marcada pelo erotismo e pela transgressão das formas convencionais. A autora foi uma ativista importante na luta contra a ditadura salazarista e pode ser inserida no centro da literatura de autoria feminina em Portugal, uma vez que é inegável a importância que suas obras têm para consolidar uma literatura que descentralize o discurso canonizado.
Se analisarmos o plano temático que perpassa as obras da autora, desde a década de 60, nos deparamos com temas que, por muito tempo, ficaram no interdito: a sexualidade feminina, o erotismo, a loucura etc. Esses assuntos andavam na contramão do que era esperado e daquilo que podia ser produzido na literatura durante o salazarismo. É sempre bom lembrar que em governos ditatoriais as mulheres (assim como outros grupos marginalizados) são as primeiras que sentem na pele a repressão e são forçadas a regredir aos valores conservadores que as oprimem. Ao trazer essas questões à luz, Teresa almeja exaltar o corpo feminino através da quebra de paradigmas, sobretudo de dois : a relação materna e o erotismo.
A quebra do primeiro se dá desfazendo a noção de maternidade que por muito tempo se resumiu a dom e a instinto. As mulheres, nas obras de Teresa, desejam ser como suas mães, ao passo que há admiração e paixão por elas, mas também desassociar-se delas, porque há o medo da repetição. O conto Transfert, presente na antologia Azul Cobalto, conta a história de uma mulher que leva ao divã suas questões familiares, dentre elas o abandono da mãe, que era taxada como louca. O enredo aponta, assim, para a condenação à loucura das mulheres que fogem de determinados padrões estabelecidos pela sociedade – questão essa que Teresa sempre trabalhou em sua literatura, por exemplo nas obras Emma (1984) e Paixão Segundo Constança H. (1994).
A personagem de Transfert sempre contou com deslocamentos em relação à sua própria figura. Como ela poderia construir-se sujeito em um meio que a inferioriza? É primordialmente pela busca dessa resposta que ela vai ao divã. Os processos de descoberta e interpretação do universo feminino envolvem como ponto de partida a questão de que para descobrir-se enquanto mulher é preciso descobrir primeiro o que é ser mulher, ainda mais quando a referência da imagem materna é tão fragmentada.
As mães horteanas são figuras que deixam um lugar de falta na vida das personagens, porque são mulheres também faltosas e não heroínas. Essa questão reflete a estrutura da cultura patriarcal de cindir as mulher em dois tipos: a mãe, mulher do lar, pura, livre de desejos e a outra, que não é mãe e não pode viver no espaço familiar sagrado. Nas obras de
Teresa há a união dessas metades: as mães são anjos, mas também podem ser o oposto disso. Essa união é um sinal de reivindicação contra a imposição da maternidade romantizada e compulsória.
É válido ressaltar que a maternidade e a família não são imposições que sempre foram colocadas contra a vontade da mulher. O casamento, por exemplo, é visto no século XIX, como uma via libertação às mulheres que desejavam viver suas vidas, construírem suas famílias e saírem da casa dos pais. O problema reside na limitação que esse espaço oferecia, isto é, as mulheres que não eram casadas e mães praticamente não existiam na sociedade e se eram, não tinham espaço na produção de outras atividades para além do círculo doméstico. Além disso, muitas delas, que acreditavam encontrar a liberdade na criação de sua própria família, frustraram-se ao depararem-se com a sobrecarga de afazeres. Na crítica, a psicanalista Maria Rita Kehl explana esse argumento, e na literatura Emma Bovary, personagem de Flaubert, é uma boa ilustração de tal quadro social.
Outro ponto que faz com que a mulher se ressignifique nas obras da autora é o erotismo: é importante lembrar que ele sempre existe dentro de uma sociedade com valores estabelecidos, isto é, a forma como é manifestado diz muito sobre a organização social de um espaço. Sendo assim, como o espaço destinado às mulheres historicamente foi limitado, o erotismo feminino também esteve no interdito por muito tempo. Se a mulher, diferente do homem, não transitava livremente entre o espaço público e privado, mas devia limitar-se ao espaço do lar, limita-se também ao amor familiar e não pode ter acesso a realização do desejo erótico. É a partir dessas concepções que Teresa transfigura a cena erótica, pois insere em suas obras o exercício erótico sendo realizado livremente pelas mulheres. Ele se torna então via de libertação do corpo feminino e Teresa o coloca no centro de sua poesia.
Indo mais além, ela pretende construir uma aglutinação entre poesia e erotismo, o corpo do poema erotizado é o corpo da mulher livre. No poema Encontro, presente na antologia “Poemas Eróticos”, isso fica muito claro: o que está em jogo desde o começo é o encontro do corpo do poema e do corpo da mulher: “Porque construo/ os meus livros/ a partir do próprio corpo.”, há uma união da mulher com o poema, na tentativa de elevar o corpo que sempre foi repudiado: “encontro do meu/ corpo/ com o corpo da poesia”.
Esses dois pontos fundamentais da literatura de Teresa, que tentei mostrar aqui brevemente, apontam para um diálogo muito importante que ainda hoje deve estar em pauta. Conquistamos muito, de modo que as mulheres horteanas já não são mais tão diferentes de nós, mas não podemos achar que tudo já foi conquistado, pois estamos vivendo uma crise que mostra que não. Dados alegam que, na quarentena, a violência doméstica cresceu 40% e que as tarefas das mulheres redobraram (cuidar dos filhos, da casa, do trabalho). Ainda precisamos quebrar paradigmas, como Teresa tentou em sua literatura, para a sociedade não continuar repetindo o erro de sempre cindir a mulher e condená-la. O elogio ao íntimo, o encontro com nós mesmas, necessita estar presente e por isso digo que a literatura de Teresa ainda é pauta para o agora.