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Entrevista com Carolina Rocha

Carolina Rocha, mais você também pode conhecê-la como Dandara Suburbana. A autora de A Culpa é do Diabo: O que li, vivi e senti nas encruzilhadas do racismo religioso, respondeu com muito carinho uma entrevista de 6 perguntas para nós. Se aconchegue, encha sua xícara porque você lerá tudo…

1- Carolina, como foi o processo de imersão nas Favelas e como você conseguiu construir relações de confiança com os entrevistados, considerando a sensibilidade dos temas abordados?

Minha experiência nas favelas para a pesquisa se mostrou bem mais complexa do que imaginei inicialmente, com dificuldades no acesso a diferentes grupos da comunidade, incluindo o varejo de drogas ilícitas e até mesmo parte da comunidade religiosa. Acredito que essas barreiras se devem, em grande parte, à minha identidade como mulher negra e intelectual, um papel que frequentemente é questionado tanto no campo quanto na própria academia. Essa desconfiança contrastou com a recepção de pesquisadores brancos em contextos semelhantes, evidenciando um preconceito racial e intelectual arraigado, onde meu corpo foi visto com suspeita, chegando a ser comparado ao jornalista Tim Lopes em tom de ameaça.

Apesar das dificuldades gerais, encontrei maior acolhimento no povo de terreiro, facilitado pela minha própria pertença religiosa. Contudo, mesmo nesse espaço, o medo da violência local impõe limites à abertura dos entrevistados. Para construir relações de confiança, adotei uma postura que é além da acadêmica, engajando-me com movimentos sociais e projetos comunitários, buscando uma troca honesta e demonstrando um compromisso político com a comunidade. Essa inserção na vida cotidiana dos moradores, participando de atividades e oferecendo minha colaboração, foi crucial para quebrar as barreiras de desconfiança e ser reconhecida como pesquisadora, professora e ativista.

Minha experiência demonstra como a identidade racial e de gênero impactam o processo de pesquisa em territórios marginalizados. Faço questão de explicitar meu lugar de fala e as dificuldades enfrentadas, em contraste com a invisibilidade da posição de outros pesquisadores. Apesar dos limites impostos por esses recortes, minha honestidade intelectual e meu engajamento permitiram que eu construísse
laços de confiança, culminando em um trabalho que reflete um esforço e uma visão coletiva, como explícito na introdução do meu livro, A Culpa é do Diabo: O que li, vivi e senti nas encruzilhadas do racismo religioso.

2- Apesar do cenário desafiador, sua pesquisa também revela histórias de resistência e esperança. Poderia compartilhar algum exemplo marcante de como as comunidades negras resistem e se organizam para enfrentar as adversidades?

Meu livro fala sobre violência, uma temática que pesquisa desde meu ingresso na universidade em 2005. Embora exaustivo, acredito ser crucial entender os ciclos do racismo e da opressão no Brasil, pois a história, ao se repetir, nos oferece uma chance de evitar erros passados. Por trás das narrativas de violência, como a que abordo ligando segurança pública, religião e crime, há também muita esperança e uma notável capacidade de articulação e negociação em situações de vulnerabilidade. A violência,
paradoxalmente, nos impulsiona a criar respostas inventivas e inteligentes, herança de uma cultura ancestral estratégica e eficaz.

Entretanto, essa constante necessidade de responder à violência e à opressão tem um custo, adoecendo-nos física, mental e espiritualmente. O conceito de “encruzilhada”, inspirado em Leda Maria Martins, resume essa complexidade brasileira: a urgência de responder à opressão com a consciência de que as armas e o poder são desiguais. Nas favelas e periferias, vemos pessoas negras negociando e criando estratégias para sobreviver, mas isso gera um desgaste imenso. A pergunta central do meu trabalho é:
a que custo estamos sempre buscando soluções para sobreviver?

Apesar da violência cotidiana, existem inúmeras histórias de resistência, esperança e fé. Os terreiros, o samba, o jongo e o maracatu são espaços de organização e fortalecimento comunitário. Mulheres pretas e lideranças locais se articulam para proteger seus territórios e suas tradições. Em momentos de crise, como invasões e tiroteios, os terreiros se tornam refúgios, desafiando narrativas de demonização. A
espiritualidade, em suas diversas formas, é um pilar de esperança e força. Meu livro compartilha histórias emocionantes de pessoas salvas pela fé e pela ação da comunidade, como o Jesus Cristo preto grafitado nos muros, uma representação da identidade e da esperança local. Acredito no poder do diálogo e da união para superar a divisão e o preconceito, e a minha pesquisa busca dar voz a essa força coletiva.

3 – Como a fé religiosa se manifesta nas lutas políticas das comunidades? Quais os desafios e as possibilidades dessa articulação?

A fé, a espiritualidade, a religião mobilizam as pessoas profundamente, uma ancestralidade que se manifesta e organiza a comunidade, muitas vezes sendo o motor para as nossas lutas políticas e a busca por uma vida melhor. Acredito que há um enorme potencial de fortalecimento através dos espaços religiosos. No entanto, enfrentamos o desafio da hegemonia cristã no Brasil, um país onde somos educados desde cedo a priorizar essa vertente religiosa, enquanto as tradições de matriz africana e indígenas permanecem marginalizadas e desconhecidas, apesar das leis que obrigam o seu ensino. Essa lacuna no nosso conhecimento histórico nos deixa vulneráveis ​​a estereótipos e à desvalorização de nossas próprias culturas.

Essa hegemonia cristã tem raízes na colonização e na escravização, um processo que demonizou e criminalizou qualquer fé e cultura fora do modelo europeu-cristão. O grande desafio é romper essa visão limitada e considerar a pluralidade de existências, religiosidades, espiritualidades e culturas que realmente formam o Brasil. As possibilidades de articulação através da fé e das diversas matrizes culturais são imensas e representam a nossa força. É por isso que há uma resistência em conhecer a nossa história negra e as tradições africanas e indígenas, mesmo estando elas presentes em tudo o que fazemos, conversamos e vivemos. Essa negação da nossa história nos enfraquece, nos impede de refletir nosso potencial e de resistir à manipulação e à opressão.

Conhecer a nossa própria história é um superpoder, e é por isso que ela nos é frequentemente negada. No entanto, a fé e a espiritualidade em suas diversas formas continuam sendo um ponto de encontro e de organização para as comunidades negras. Vejo nos terreiros e em outras manifestações culturais e religiosas espaços de resistência, de construção de identidade e de luta por direitos. A fé nos dá esperança e nos fortalece para enfrentar as adversidades. Acredito que, ao considerarmos e valorizarmos as nossas diversas tradições espirituais e culturais, podemos construir uma sociedade mais justa e igualitária, onde a nossa história finalmente seja contada e respeitada.

4 – Como o gênero se intersecciona com as questões religiosas e sociais abordadas no livro? Quais são as especificidades das experiências das mulheres negras nesse contexto?

Na minha pesquisa, embora o foco inicial fosse a raça, a questão de gênero se tornou central ao observar a força da organização coletiva das mulheres negras nas favelas e periferias. Seja nas lojas ou nos terreiros, são elas que se destacam na luta pela sobrevivência de suas famílias e comunidades, pelo enfrentamento do tráfico e pela violência policial. São essas mulheres que enfrentam as injustiças, defendendo seus direitos e a dignidade de seus territórios. A maioria das histórias marcantes que conto
no livro tem como protagonistas mulheres negras, atuantes na articulação, na defesa e na resistência.

Essa centralidade das mulheres negras também se conecta ao genocídio da população negra no Brasil, onde nossos homens jovens são sistematicamente vitimados. Eles lutam pela vida de seus filhos e companheiros em um contexto de políticas de drogas falhas e de uma terceirização problemática do tratamento para comunidades terapêuticas, muitas vezes ligadas a fundamentalismos religiosos e permeadas por denúncias de abusos. A luta dessas mulheres pela dignidade é, portanto, multifacetada
e essencial de ser visibilizada.

Um exemplo marcante que presenciei em uma das favelas que pesquiso ilustra bem essa força. Um varejista de drogas, influenciado por uma cultura neopentecostal crescente no território, tentou fechar os terreiros. No entanto, um grupo de mulheres negras, já organizado e consciente da história da sua comunidade, que remonta aos tempos da escravidão e dos trabalhadores do porto, se articulou para impedir essa ação. Elas confrontaram o varejista, argumentando que fechar os terreiros seria negar a própria história e a história da favela. Apesar do esforço e da violência latente, a resistência dessas mulheres prevaleceu, demonstrando a força da sua organização e a importância da memória ancestral na luta contra a intolerância religiosa.

5 – Quais são os próximos passos da caminhada intelectual? Quais outros temas você
pretende explorar?

Os passos próximos da minha caminhada intelectual me levam de volta a um tema que já explorai no mestrado: as bruxas pretas. Essas mulheres negras e indígenas, processadas por bruxaria e feitiçaria no Brasil colonial, revelam, de forma surpreendente, inúmeras interseções com as dinâmicas que observamos no Brasil contemporâneo. Afinal, a história do racismo religioso e da perseguição a terreiros é de longa duração, enraizada desde a colonização.

Meu foco agora se volta para a família. Estou profundamente interessado em compreender como o racismo religioso afeta as relações familiares brasileiras. Observam-se casos dolorosos, como netos impedidos de conviver com suas avós por serem mães de santo ou terem terreiros em casa, devido à conversão religiosa de outros membros da família. Filhos que não se falam, comentários e dissolução de laços de confiança são algumas das consequências danosas do racismo religioso no tecido
familiar.

Busco, portanto, investigar como essas relações familiares foram construídas e desconstruídas no Brasil, tanto em termos de laços afetivos quanto de rupturas, a partir dos efeitos perversos do racismo religioso. Acredito que compreender essas dinâmicas é fundamental para desnaturalizar o preconceito e promover a cura e a proximidade dos laços familiares afetados pela intolerância religiosa.

6 – Qual mensagem você gostaria de deixar para os leitores que se interessam pela temática?

Para vocês, leitores e leitoras que se sentem tocados por esse tema, meu maior desejo é que busquem conhecer as histórias que pulsam nos bastidores, no cotidiano das pessoas. Não se contentam com a superficialidade das manchetes de jornal, que muitas vezes oferecem um panorama raso da complexidade que reside em nossos territórios. Acredito firmemente que meu livro contribui para complexificar as relações que tecemos em nossas favelas hoje, atravessadas por fé, política, crime,
sobrevivência, criatividade, inteligência, cooperação e união.

Se a história do nosso país lhe interessa profundamente, este livro é para você. Ao conhecer histórias e trajetórias, somos afetados, construindo conexões mais humanizadoras e afetivas. Se a história vos encanta e a sensibilidade vos move, preparai-vos para emoções genuínas.

Para aqueles que carregam dúvidas e perguntas, este livro não contém todas as respostas, mas certamente ajudará a formular questionamentos ainda mais profundos e a esclarecer muitas outras indagações. E os que apreciam uma boa “fofoca” – afinal, historiadores somos contadores de histórias da vida cotidiana – encontrarão aqui narrativas que ensinam e oferecem estratégias de sobrevivência. Se almejam viver melhor, inspirando-se na resiliência de tantas mulheres negras criativas e fortes, que
apesar da violência e do silenciamento encontram força para recomeçar, este livro é um companheiro. Em suma, é uma leitura para quem ama a vida e busca as melhores formas de conhecer a História do Brasil e, consequentemente, a si mesmo.

A Culpa é do Diabo: O que li, vivi e senti nas encruzilhadas do racismo religioso está disponível em nosso site, na amazon e em todas as livrarias.

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