Conceição Evaristo, um dos grandes nomes da literatura e da cultura brasileira contemporânea, publicou pela Oficina Raquel Macabéa, Flor de de Mulungu. Um livro no qual a personagem de Clarice Lispector passa a ter voz e vida.
Conceição respondeu algumas perguntas para a Oficina Raquel que compartilhamos agora, com nossos queridos leitores…
Quando foi sua primeira leitura do livro A Hora da Estrela?
A minha primeira leitura do livro A Hora da Estrela foi mais ou menos na década de 80, 81, 82, mais ou menos nessa época. Embora eu não tivesse ainda tanta reflexão sobre o direito de cada um contar a sua história, o direito de quebra de um silenciamento imposto, me encabulou muito a ausência de fala de Macabéa. Saber de Macabéa através do olhar do narrador me causou um certo incômodo, a placidez de Macabéa. E a ideia que eu tinha no momento, a sensação que eu vivi no momento, porque Macabéa me parecia tão insignificante. E passou. Depois, fui retomar a leitura da Hora da Estrela em 2012, quando a Oficina Raquel buscou homenagear Clarice Lispector, convidando alguns escritores para dialogar com o texto de Clarice. E esse diálogo poderia ser de escolha desses escritores. Nós deveríamos escolher uma personagem ou uma obra de Clarice Lispector e criar uma história a partir da leitura de alguma obra de Clarice.
Porque você recriou a Macabéa?
A pergunta por que eu quis recriar Macabéa? Eu quis recriar Macabéa porque Macabéa é uma personagem que me comoveu, Macabéa me comoveu pelo silêncio de Macabéa, por perceber que quem contava a história de Macabéa era outra pessoa, e eu fiquei imaginando que Macabéa teria mais histórias para contar, ou teria outras histórias para contar. E como eu sabia dessas outras histórias pertencentes à macabreia, eu quis contar essa outra história que pertence à macabreia.
Como é a sua identificação com a Macabéa?
A minha identificação como a Macabéa passa pelo fato de a personagem ser uma pessoa dos extratos populares. É interessante que, no primeiro momento, quando ela faz o movimento de sair da casa dela, quando ela faz o movimento de buscar uma cidade maior, é um movimento de retirada das populações mais pobres ou de quem tem um sonho que é impossível cumprir naquele lugar onde se nasce. Esse movimento de perceber que a vida está além do espaço geográfico em que a pessoa nasceu. Então, esse movimento de êxodo, esse movimento de sair da sua terra, de deixar, inclusive, uma geografia afetiva, deixar o lugar de nascença para trás, isso é bonito e é doloroso ao mesmo tempo. E é esse movimento também que eu fiz quando eu saí de Belo Horizonte em 1973 e venho para o Rio de Janeiro. Esse movimento de uma Macabéa ainda muito jovem, ainda menina, esse movimento é um movimento que dá uma certa… que dá uma certa… que dá uma esperança para a personagem, que dá a impressão que essa personagem vá talvez agarrar-se à vida, vá construir sonhos. Isso me comove em Macabéa e isso, de certa forma, me dá também uma identificação com a personagem.
Comente sobre a sua popularidade e da literatura negra nesse atualmente:
A popularidade que eu venho usufruindo nos últimos tempos me dá uma alegria muito grande, porque comprova que uma literatura que é criada a partir de uma situação muito específica, eu tenho dito que toda a minha obra literária é contaminada pela minha condição de mulher negra na sociedade brasileira. Não só o texto literário, os ensaios que tenho produzido também aparecem contaminados pela minha condição, pela minha experiência de mulher negra na sociedade brasileira. Essa popularidade me deixa feliz no sentido de perceber que uma literatura tão específica, que nasce de uma experiência tão específica, essa literatura é capaz de contaminar as pessoas bem diferentes de mim. Porque, quando eu percebo que velhos, novos, pessoas jovens, pessoas brancas, pessoas negras, pessoas estrangeiras, leem a minha literatura, se comovem com a minha literatura, isso me dá uma alegria, mas, ao mesmo tempo, também, uma responsabilidade muito grande. Eu estou falando… O texto literário criado por mim fala desde pessoas americanas, Pôncia Vicêncio já foi traduzido para o inglês, como também já foi traduzido para o hebraico, Becos da Memória acaba de ser traduzido para o eslavo e para o italiano, então, não é só o público nacional. Então, eu acredito que há alguma coisa de comoção nesse texto literário, nessas narrativas, que extrapolam o primeiro círculo que me acolheu, o meu primeiro lugar de recepção, que foi o movimento negro, o movimento de mulheres. Então, essa literatura extrapola essas experiências específicas, uma experiência de uma brasileira, de uma brasileira negra, de uma brasileira que vem dos extratos populares e ganha o mundo, que comove o mundo. Entretanto, sem sombra de dúvida, há um fato que vai também ajudar e muito a visibilizar essa autoria negra, quando ainda no primeiro governo Lula é criado a lei que obriga o ensino das culturas africanas e afro-brasileiras no ensino de primeiro e de segundo grau. Essa lei, mais tarde também, é ampliada no sentido também de obrigar o ensino de instituir o ensino das culturas indígenas e então há uma demanda de mercado, há uma demanda de material em torno de conteúdos que possam ser desenvolvidos. Como discurso literário é um discurso que pode dialogar com várias áreas do conhecimento, essa ficcionalização a partir das experiências negras tanto para crianças pequenas como também para jovens e adultos, essa ficcionalização ganha também, ela passa a ser procurada. Há também um desejo público de conhecer, há uma curiosidade também de conhecer essa autoria e isso ajuda, sem sombra de dúvida, isso ajuda também a ampliar esse discurso literário brasileiro, ampliar o sistema literário brasileiro com obras que trazem não só a competência, que trazem não só uma ficcionalização em torno das experiências das pessoas brancas, mas uma ficcionalização em torno das experiências dos sujeitos negros e dos sujeitos indígenas.
Por que Flor de Mulungu?
A primeira vez que eu vi um pé de Mulungu foi numa fazenda colonial aqui no interior do Rio de Janeiro. Eu fui trabalhar nessa cidade e fui visitar também essas fazendas turísticas. E tudo me chamava a atenção naquela fazenda, a construção da casa, a parte onde estava situada a senzala, que diga de passagem, era uma parte abandonada lá atrás na fazenda onde só tinha matos. E a um dado momento eu olho e vejo uma árvore em floração, e nessa árvore tinha vários passarinhos me conversando com a senhora da casa, a herdeira colonial, e ela me contou que havia um certo momento no ano que todas as árvores perdiam as flores e somente o pé de Mulungu ficava florido e as aves iam pousar ali. Me chamou a atenção a palavra Mulungu, eu percebi logo que era uma palavra de origem africana, provavelmente das línguas, das culturas bantos, e fui procurar sobre Mulungu. E descobri, inclusive, os efeitos sedativos da casca de Mulungu, pode tanto ser somente… o efeito pode produzir sono, a pessoa pode dormir, como pode produzir um sono que a pessoa não acorde mais. Nesse sentido, veio logo a ideia de uma ficcionalização. A árvore também tem um nome muito sintomático, popularmente ela também é conhecida como a mansa senhor. Imagine o que se pode ficcionalizar em torno de uma árvore que se chama também, que é conhecida por a mansa senhor. Imagine o que seria esse a mansa senhor numa ficção que trouxesse sujeitos escravizados que precisavam ter um enfrentamento com os senhores, um enfrentamento que não poderia ser explícito. E fui divagando nessa ideia, fui divagando nessa ideia. Eu já tinha começado a escrever um conto em que o personagem teria uma certa placidez de Macabéa. Aliás, ele não teria essa placidez de Macabéa. Pessoas de fora olhariam para esse personagem e imaginariam só sofrimento para esse personagem, menos uma possibilidade de uma vida interior muito intensa. Eu comecei a escrever sobre esse personagem e esse personagem tinha justamente o apelido de flor de mulungu. Eu resolvi aproveitar um texto que eu começava a elaborar para compor a personagem Macabéa, para nomear a personagem Macabéa, e pensei em Macabéa como flor de mulungu. A ideia foi crescendo, crescendo, crescendo.
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